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A PERDA DOS BENS, COMO EFEITO AUTOMÁTICO DA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA.

Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. É o que diz o art. 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988, que erigiu a legalidade à condição de princípio fundamental do Estado Democrático de Direito.

Em conseqüência, quando se está a tratar dos direitos e garantias fundamentais, é obrigatória a interpretação extensiva em favor dos cidadãos, tendo no princípio constitucional da cidadania, previsto no art. 1º, inciso II, a reverência a uma interpretação mais humana da lei.

MIGUEL REALE ensina que “é essencial reconhecer o status originário e primordial da pessoa humana como valor-fonte, evitando-se não somente o mal irreparável das ideologias totalitárias, mas também toda e qualquer forma de autoritarismo”[1].

O Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, deixou ementado o seguinte entendimento:

“O direito de defesa confunde-se com a noção de devido processo legal, além de, preservado, atender aos reclamos decorrentes do fundamento da República Federativa do Brasil que é a dignidade da pessoa humana – artigos 1º e 5 º, inciso LV, da Constituição Federal. Ambígua a situação, tal direito há de ser viabilizado à exaustão (Coqueijo Costa), óptica robustecida quando em jogo o exercício da liberdade de ir e vir”[2].

Para INGO WOLGANG SARLET:

“(...) não restam dúvidas de que todos os órgãos, funções e atividades estatais encontram-se vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-se-lhes um dever de respeito e proteção, que se exprime tanto na obrigação por parte do Estado de abster-se de ingerência na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, quanto o dever de protegê-la (a dignidade pessoal de todos os indivíduos) contra agressões oriundas de terceiros, seja qual for a procedência, vale dizer, inclusive contra agressões oriundas de outros particulares, especialmente – mas não exclusivamente – dos assim denominados poderes sociais (ou poderes privados)"[3].

Todos os integrantes dos Poderes do Estado, em especial os membros do Poder Judiciário, somente podem fazer o que a lei lhes permite. Não se está, com isto, relegando a um segundo plano as demais importantes dimensões do Direito. Apenas se sustenta que a lei, observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, é o parâmetro para que os atos emanados do Poder Público sempre respeitem a dignidade da pessoa humana e as garantias constitucionais do cidadão, da forma mais ampla possível, assim como, para que a autoridade constituída respeite os limites impostos à sua atuação.

No âmbito dos Direitos Penal e Processual Penal, seara em que geralmente está em jogo um dos direitos mais sagrados da pessoa humana - o direito à liberdade - o que se afirmou adquire maior expressividade. Qualquer violação ao direito à ampla defesa e ao contraditório, que a Constituição assegura aos acusados, por mínima que seja, reveste-se de maior gravidade, eis que, dentre outras, fere o princípio da dignidade da pessoa humana, pedra angular de todo o ordenamento jurídico nacional.

GUSTAVO TEPEDINO ensina que:

“A propriedade conferida à cidadania e à dignidade da pessoa humana (art. 1º, I e III, CF), fundamentos da República, e a adoção do princípio da dignidade substancial (art. 3º, III), ao lado da isonomia formal do art. 5º, bem como a garantia residual estipulada pelo art. 5º, parágrafo 2º, CF, condicionam o intérprete e o legislado ordinário, modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte”[4].

Nesse sentido, merece uma análise mais aprofundada a questão da perda, em favor da União, dos produtos ou instrumentos do crime ou de qualquer valor auferido em decorrência da prática de um fato criminoso, um dos efeitos da sentença penal condenatória, que a doutrina clássica denomina de efeito automático da sentença penal.

Tal efeito está previsto no artigo 91, inciso II, alíneas “a” e “b”, do Código Penal:

“Art. 91. São efeitos da condenação:

(...)

II – a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé:

a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito;

b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso”.

Em decorrência dessa prescrição legal, nas sentenças penais condenatórias, não se menciona o motivo da perda dos bens, até porque a denúncia a eles não faz referência; ou, não se identifica o nexo de causalidade entre o fato e a perda. Muitas das vezes, até mesmo a decretação da perda é feita de forma implícita. Não raro não se vê uma linha sequer contendo determinação precisa quanto ao perdimento dos bens, do acusado ou de terceiros em favor da União, tudo ocorrendo como num passe de mágica.

É comum o Ministério Público, na Ação de Seqüestro Penal por crimes de sonegação fiscal, previdenciários e contra a administração pública, movida antes ou no curso da ação penal contra empresários, requerer o seqüestro prévio de todos os bens do acusado, de parentes e de terceiros, sem ressalvas. Nesse caso, toma-se por base apenas simples afirmação de portarem indícios de serem produtos do crime ou de proveniência ilícita, culminando, ao final do processo, com sua perda automática para o ente público que se diz vítima.

Todavia, diante da ordem constitucional vigente, esta perda não mais pode ser aceita como efeito automático da sentença penal condenatória.

Ninguém ignora que, com o advento da Constituição Federal de 1988, deixou de ser válida toda a legislação produzida sob a égide da carta anterior, quando incompatível com a nova ordem constitucional.

Em se admitindo que o artigo 91, inciso II, alíneas “a” e “b”, do Código Penal foi recepcionado pela Carta Magna de 1988, deve-se reinterpretá-lo conforme a Constituição. Nesse sentido, exige-se que a decretação da perda de bens em favor da União seja, pelo menos, motivada, sob pena de nulidade da sentença penal quanto a este efeito, pois inexiste condenação implícita.

Não parece correto sustentar, relendo o caput do art. 91 do Código Penal, bem como seu inciso II, alíneas “a” e “b”, à luz da Constituição Federal, com sua nova carga valorativa a exigir contraditório e ampla defesa, que ela o tenha recepcionado no ponto em que autoriza o decreto de perdimento automático de bens, sem fundamentação e contraditório, em favor da União, “do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso”, mesmo quando tais bens seja de propriedade do acusado.

Se nos casos de bens pertencentes ao acusado há necessidade de obediência ao contraditório e à ampla defesa, com maior razão quando estiver em jogo os bens de parentes do acusado e de terceiros que não fizeram parte da empreitada “criminosa”, nem tampouco figuram na denúncia como co-autores ou partícipes do crime.

Mal comparando, se admitida a perda automática, o seqüestro transforma-se em direito de seqüela retroativo, o que não se admite, pois: a) os gravames sobre bens, especialmente sobre imóveis, devem ser anotados nos registros públicos, justamente para se dar garantia a terceiros; b) o direito de seqüela retroativo é uma ofensa ao princípio de garantia das relações comerciais (nunca haverá segurança jurídica nos negócios e, por mais diligente que o comprador seja, a qualquer momento poderá perder o bem, se sobre ele vier a recair um seqüestro); c) para o terceiro haverá verdadeiro confisco de bens; d) o argumento de que o terceiro terá ação regressiva contra o acusado é injusto, vez que o Estado não preveniu o crime: 1º, em relação ao acusado (educação, ressocialização, punição, etc.); 2º, em relação ao bem (permitindo que bens produto de crime sejam ofertados como de origem lícita no comércio). Por isso, ADA PELLEGRINI GRINOVER adverte:

“Fazer a sentença penal condenatória recair sobre quem não se defendeu infringe as regalias constitucionais do processo (art. 5º, LIV, da CF/88)”[5].

O artigo mencionado assim:

“Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

É importante ressaltar que a União apenas pode seqüestrar os produtos ou bens que sejam de proveniência ilícita, auferidos com a prática do crime, estando fora da malha da lei os bens adquiridos licitamente pelo sentenciado, ou por parentes e terceiros, antes do fato criminoso, ou mesmo posteriormente, com base em lícita transação comercial. Esta separação entre o que é produto lícito e ou de atividade ilícita, bem como o nexo de causalidade, deve ser motivadamente demonstrado na sentença penal, pois há exigência constitucional neste sentido, como se vê no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal:

“Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”.

E é natural que assim seja, porquanto a mesma Constituição Federal garante no artigo 5º o direito de propriedade, deste modo.

Ninguém perde a liberdade ou os bens sem o processo. Então, há direito do cidadão ao processo e, quando a sentença penal, como num passe de mágica, sob o dogma da perda automática de bens, transfere bens de particular para o Estado, está, em outras palavras, negando o direito ao processo e afastando da apreciação do Poder Judiciária lesão a direito.

Por estes motivos, não há compatibilidade entre o artigo 91, caput, e inciso II, alíneas “a” e “b”, do Código Penal e os artigos 93, IX e 5º, LIV, ambos da Constituição Federal, havendo, na verdade, choque frontal e direto, sendo nulas as sentenças penais desse jaez.

O operador jurídico contemporâneo, se pretende aproveitar este artigo, deverá fazê-lo sem considerar o efeito automático do perdimento de bens, e ainda, desde que a sentença penal que decreta a perda seja devidamente motivada, sob pena de não servir como força obrigatória.

Para que o acusado ou terceiros venham a ser privados de seus bens, faz-se necessária a prévia reflexão judicial acerca da necessidade ou não do perdimento dos bens, assim como sobre a sua proveniência ilícita.

Por outras palavras, deve-se verificar se os bens constituem realmente proveito do crime ou valor auferido em decorrência dele. Sem esta análise, o acusado não tem como se defender desse efeito da condenação, mormente porque, quase sempre, a denúncia é silente a respeito.

A ação de seqüestro penal não permite a instrução do feito, e neste a prova não passa pelo crivo do contraditório, havendo apenas uma decisão (não sentença), existindo, inclusive, divergência quanto ao recurso a ser utilizado para desconstituir a constrição: apelação, agravo, mandado de segurança, ou recurso em sentido estrito.

Durante a instrução criminal, salvo quando os bens apreendidos sirvam para comprovar a materialidade do crime, não haverá perquirição acerca deles, especialmente em relação a sua origem. Desta forma, os bens não passam concretamente pelo crivo do contraditório.

Por isso, a decretação do perdimento automático, sem passar pelo crivo do contraditório e da ampla defesa, fere preceito constitucional.

Não deve impressionar a oposição de tese contrária, que defenda ser suficiente a cautelar de seqüestro penal, para este fim manejada pelo Ministério Público.

Entende-se que essa ação tem natureza exclusivamente cautelar, servindo-se do fumus boni iuris e do periculum in mora apenas como segurança para o resultado útil do processo principal, no caso, o penal.

Naquele processo, se dará a condenação e o decreto de perda dos bens em face da União que, no entanto, jamais será apta para transferi-los, mormente porque a cautela não faz coisa julgada material, ou seja, não tem a aptidão para alienar e transferir bens dos particulares para o ente público.

Pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição, grafado no artigo 5º, inciso XXV, da Constituição Federal, prescrevendo que nem mesmo a simples ameaça de lesão a direito ficará fora da apreciação do Poder Judiciário, é direito de qualquer cidadão obter do Judiciário a garantia de que vai ser efetivamente ouvido, por um juiz que já exista antes da ocorrência dos fatos, imparcial e independente, e que as ponderações do acusado serão levadas em conta para, após serem suficientemente debatidas, decidir-se em um ou noutro sentido. A isso denomina a melhor doutrina nacional de juízo contraditório.

Porém, quando a perda dos bens é decretada de forma implícita, se é que se pode falar em decretação implícita, impossibilita-se o exercício dessa garantia constitucional, na medida em que o sentenciado não tem como precisar sobre o quê deverá versar sua defesa.

Outro problema, relativo à perda de bens, coloca-se quando tal efeito da condenação atinge bens que sequer integram o patrimônio do acusado.

Amiúde se vê ação de seqüestro penal manejada pelo Ministério Público alcançar todos os bens do acusado, de parentes, de terceiros e até mesmo aqueles adquiridos antes do fato reputado criminoso.

Diz a Constituição Federal no seu art. 5º, inciso XLV: “a pena não passará da pessoa do condenado”.

Portanto, esse efeito, se fosse possível ser aplicado sem motivação, deveria estar restrito àquele que, de qualquer forma, é co-autor ou partícipe do crime, em observância aos estritos limites subjetivos da lide.

Se se pretende seqüestrar, além de bens do sentenciado, bens de terceiros estranhos ao processo, que, por isso, não podem se defender na lide penal, o mínimo que se espera é a motivação da sentença quanto a terem sido os bens produto de crime ou de proveniência ilícita.

Sem isso, não se evidencia o nexo de causalidade que autorizaria a apreensão de bens de terceiros; pelo contrário, ocorre puro confisco ilegal e excessivo.

Valiosa, nesse ponto, a lição de MIGUEL REALE, para quem “isto quer dizer, a Administração Pública, direta ou indireta, não pode restringir a esfera da livre iniciativa dos indivíduos, nem mesmo privá-los de seus bens a não ser mediante a instauração de um processo no qual o acusado terá direito a plena e efetiva defesa de seus interesses[6]. Portanto, ter um processo à sua disposição é um direito do cidadão.

Em síntese, o que se advoga é que a perda de bens que sejam produtos ou proventos do crime não é mais efeito automático da sentença penal condenatória, havendo necessidade de se fazer menção expressa sobre ela, inclusive, com a condição sine qua non de que a perda resulta de embate fulcrado no contraditório e na ampla defesa, com todos os meios e garantias a ele inerentes, como quer a Constituição Federal de 1988.

A cláusula principiológica do due process of law (devido processo legal), prescrita no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, com a redação seguinte: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes", garante ao cidadão, em vista de qualquer acusação, proveniente do Estado ou de particulares, que lhe seja garantido prévio contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Contraditório e ampla defesa, na definição de ODETE MEDAUAR significa:

“Em essência, o contraditório significa a faculdade de manifestar o próprio ponto de vista ou argumentos próprios ante fatos, documentos ou pontos de vista apresentados por outrem (...). Elemento ínsito à caracterização da processualidade, o contraditório propicia ao sujeito a ciência de dados, fatos, argumentos, documentos, a cujo teor ou interpretação pode reagir, apresentando, por seu lado, outros dados, fatos, argumentos, documentos”[7].

Nunca é demais ressaltar que os princípios constitucionais, mesmo os implícitos, são normas e, como tais, devem ser obedecidos, sob pena de se fazer da Constituição uma simples recomendação programática. No sentido semântico do texto, para aprofundar no tema, consulte-se a obra do eminente Juiz Federal, SÉRGIO FERNANDO MORO, que, com pena de mestre, verbera:

“A idéia central do constitucionalismo é, portanto, de assegurar e promover os direitos fundamentais do homem, os entendidos como tais pela comunidade. O constitucionalismo representa o reencontro do Direito positivado com o direito natural. Não obstante, não se pode perder de vista que a posição dos direitos do homem não exclui a premissa básica do constitucionalismo, de que o homem tem direitos independentemente do Estado e até contra este”[8].

Se a União quer os bens do acusado, ou dos terceiros em processo judicial, supostamente adquiridos com os proventos do crime, deve antes respeitar o crivo da ampla defesa, e, consequentemente, estar expresso o fundamento da decisão na sentença penal condenatória, sob pena de ser nula de pleno direito, podendo importar em violação a direito líquido e certo do sentenciado ou de terceiros, passível de correção pelo writ of mandamus.

Com certeza, a declaração de perda automática da propriedade, sem passar pelo contraditório e pela ampla defesa e, ainda, sem motivação, fere o direito de propriedade, consagrado em todo o mundo, nomeadamente nos países democráticos. A aplicação da perda automática somente é aceitável nos estados não democráticos.

Nem mesmo a desapropriação por interesse público autoriza a tomada da propriedade sem o contraditório e a ampla defesa.

Pessoas de bem (terceiros) poderão perder seu patrimônio, muitas vezes construído por uma vida inteira, em homenagem a um direito penal irresponsável que, ao invés de aplicar o contraditório e a ampla defesa, determina a aplicação da presunção.

Veja-se que nas questões litigiosas que envolvem o direito de propriedade, nos casos de partes casadas, é obrigatória a citação ou intimação do cônjuge, mesmo que ele não seja parte no processo. No seqüestro penal, seguer há necessidade de dar ciência da constrição ao terceiro proprietário, ainda que esteja a transação registrada no registro de imóveis.

É um absurdo. Presume-se que todo patrimônio pertencente ao infrator e os que lhe tenha pertencido é produto do crime, mesmo que tenha sido adquirido anteriormente a sua prática ou, até mesmo, recebidos como herança.

Na doutrina moderna, já ecoam vozes interpretando a norma penal ora em comento segundo a nova ordem constitucional:

“é indispensável que o julgador demonstre de forma objetiva, segundo as provas dos autos, enquadrarem-se os bens constritos, tanto em relação aos instrumentos quanto aos produtos do crime, nas hipóteses previstas no art. 91, inc. II, que prevê o perdimento em favor da União Federal. Neste aspecto a motivação é efetivamente indispensável, sob pena de a decisão ser nula neste particular”[9].

Ainda que se abandone o argumento segundo o qual a decretação do perdimento de bem instrumento ou produto do crime seria dispensável, mesmo assim haveria necessidade de reconhecimento pela decisão judicial, quando os bens portarem tais características (ou gravame), o que importa na motivação do julgado neste sentido.

A fundamentação do julgado que concluir pelo perdimento de instrumento ou produto do crime é indispensável, seja em relação à declaração propriamente dita da decretação, seja quanto à indicação expressa de se tratar de instrumento ou produto de crime.

Nem mesmo nos delitos de tráfico de entorpecentes, apesar de previsão legal admitindo o perdimento dos bens, os Tribunais negam a simples interpretação literal desta norma, dando prevalência à forma sistemática interpretativa, em atendimento à nova ordem constitucional:

“O art. 34 da Lei 6.368/76, não autoriza o automático e objetivo perdimento de veículo utilizado na prática do delito de tráfico de entorpecente. Tal pena há que ser objeto de trato na instrução da causa, e examinada na sentença condenatória. Ademais, cabe, em cada caso, ao juiz examinar a peculiaridade do uso do automóvel, porque sendo ele eventual, não enseja o encargo”[10].

“Se a denúncia e a sentença condenatória não mencionam que o veículo reclamado pelo impetrante não foi utilizado, nos termos do art. 34, Lei 6.368/76, sendo o confisco, instituto de interpretação restrita, a apreensão se revela desnecessária”[11].

Além destas questões, é necessário dizer que a mesma Constituição Federal de 1988 veda o confisco de bens; por isso, seria uma negação à Lei Maior admitir o reconhecimento da perda de bens, pelo Poder Judiciário, sem a necessária fundamentação.

Igualmente o art. 5º, caput, garante o direito à inviolabilidade da propriedade, prescrevendo que “todos são iguais perante a lei (...) garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” e que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Por todos os ângulos que se mire, a perda automática de bens é um sinistro no direito codificado brasileiro. Está ele isolado do conjunto das demais normas legais, sendo a perda automática um retrocesso legal.

Em suma, não existe no ordenamento jurídico nacional a transmissão abstrata da propriedade, vale dizer, sem uma causa justa.

VICENTE PAULA SANTOS

Advogado de Empresas em Curitiba/PR.

[1] REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 11.


[2] Habeas Corpus nº 80.031-9/RS, publicado no D.J. de 14.12.2001.


[3] SARLET, Ingo Wolgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 108.


[4] TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 47.


[5] GRINOVER, Ada Pellegrini. Eficácia e Autoridade da Sentença Penal, São Paulo, p. 50.


[6] REALE, Miguel. Temas de Direito Positivo, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p.188.


[7] MEDAUAR, Odete. A Processualidade no Direito Administrativo, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 96.


[8] MORO, Sérgio Fernando. Legislação Suspeita, Curitiba: Ed. Juruá, 1998, p. 35.


[9] SILVA, Jorge Vicente. Tóxicos, 2ª ed., Curitiba: Ed. Juruá, 2002, p. 249.


[10] TAPR, Rel. Juiz Cunha Ribas, Ap. Crim. 177.788-0, publicado no DJ/PR de 26.10.2001.


[11] STJ, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, MS nº 5.041-6, publicado no DJU de 20.03.1995.

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